segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Recordar é (sobre)viver

Encontrei esse texto numa das esquecidas gavetas que minha memória costuma revisitar de vez em quando...

Evangelho Rural

Amanheceu. Não aquele despertar bucólico com flores, pastores e musas. Uma simples manhã para um simples cidadão do campo. Ele levanta-se com a mesma esperança e dedicação dos dias anteriores. Sabe que seu sustento depende unicamente de sua força e vitalidade.

Ao transitar por sua pequena residência, nada muito luxuoso- um quarto, algumas tralhas, sua mulher e filhos- procura os apetrechos necessários para manutenção de sua ferramenta mais importante: seu corpo. Lava-o, alimenta-o e o reveste com a armadura desgastada de um cavaleiro da colheita.

Após se equipar devidamente, espera sua condução. Trata-se de um coletivo nada confortável, com velhas poltronas e um antigo rádio cedido gentilmente pelo já mui cansado motorista. Durante o percurso, o fatigado operário rural ouve melodias em estranhos idiomas mas, mesmo assim, as cantarola quase que mecanicamente. Seus pensamentos fazem referencia a quase nada, apenas ao receio de não mais ser útil e necessário ao seu superior.

Destino alcançado, desembarca ele em seu campo de batalha. Nada de descanso, apenas corte colheita corte colheita, o dia todo, todo dia. Com a foice na mão esquece aquele tenebroso juízo no qual tornara-se inválido. Lembra-se agora de seus muitos filhos, da depauperada esposa, dos sonhos que nunca alcançou, das possibilidades futuras, de tudo. Tenta com isso evadir-se daquele universo escravista que suga como um vampiro suas limitadas reservas energéticas.

Fim de tarde. Já bastante exausto, segue para sua condução de retorno. Antes do embarque, abastece sua avariada ferramenta de trabalho com um pouco de pão, água e esperança, seja num dia menos sufocante, seja numa morte menos dolorosa como esta.

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